Brief historical notes on the evolution of professional civil liability insurance in the area of health in Brazil
Fonte: Revista de Direito Médico e da Saúde – nº 26 – Anadem
Karina Lanzellotti Saleme
Resumo: O presente artigo fornece informações históricas da construção e da introdução do Seguro de Responsabilidade Civil Profissional na área da saúde no Brasil, percorrendo as diferentes técnicas e conceitos dentre as formas de contratação da apólice. Proporciona ao leitor informações simples, mas, ao mesmo tempo, elementares e basilares sobre os clausulados de Medmal no País, auxiliando na atuação tanto do corretor quanto do advogado especializado na área do Direito Médico. A construção do tema foi feita com base na doutrina, na jurisprudência e na evidência empírica.
Palavras-chave: Seguro de Responsabilidade Civil Profissional na área da saúde. História do Seguro de Responsabilidade Civil. Clausulados de Responsabilidade Civil Profissional. Informações técnicas do seguro. Direito Médico. Direito do Seguro.
Abstract: This article provides historical information on the construction and introduction of professional civil liability insurance in the health area in Brazil, covering the different techniques and concepts among the forms of contracting the policy insurance. It provides the reader simple information, but, at the same time, elementary and basic information about Medmal’s clauses in the country, helping both the broker and the lawyer specialized in the area of Medical Law. The construction of the theme was based on doctrine, jurisprudence and empirical evidence.
Keywords: Professional Civil Liability Insurance in the health area. Civil Liability Insurance’s History. Professional Civil Liability Clauses. Insurance technical information. Medical Law. Insurance Law.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo possui a pretensão de convidar o leitor a um sobrevoo através de conceitos técnicos do Seguro de Responsabilidade Civil Profissional (RCP), que muitas vezes acabam não sendo estudados e são a base do entendimento desse seguro de características tão peculiares.
Antes de adentrar as questões técnicas, necessário se faz falar do ilustre e impolutoDoutor Felippe Moreira Paes Barretto, figura essencial no início da implantação e estruturação do Seguro de RCP na área da saúde no Brasil. Um sem o outro não existiria na configuração atual que temos no mercado.
Em 1992, como diretor de corretora de seguros e com aproximação junto aos hospitais, naquela ocasião, já pensando em uma cobertura de RCP para os estabelecimentos de saúde, foi ao mercado e se deparou com a General Accident, seguradora americana que possuía um multirrisco – espécie de seguro que dentro de uma única apólice cobre riscos diversos, tais como incêndio, danos elétricos, vendaval, RC operações e RCP. Tratava-se de um produto muito amplo, que não iria atender aos riscos da atividade hospitalar. Assim, Felippe desenhou exclusivamente para a Associação dos Hospitais do Estado de São Paulo(AHESP) juntamente com a mencionada seguradora uma cobertura para as instituições da área de saúde, sendo denominada Pronto Seguro.
Em 1998, um broker (corretor) de resseguro argentino, que Felippe conheceu em Buenos Aires, dois anos antes, visitou-o em São Paulo, quando tomou conhecimento dos pormenores do Porto Seguro, encantando-se por saber que Felippe estava no mercado dos hospitais e o convidando a ir à Argentina para conhecer a forma que eles operavam o seguro naquele país. Convite esse que foi honrosamente aceito.
Quando lá chegou, encontrou um “mundo novo” nessa área. Pôde visitar a empresa San Pacific – prestadora de serviços na área de RCP no campo da saúde no mercado argentino –, que tinha muita experiência nessa área, eis que um dos sócios já havia trabalhado em uma seguradora estrangeira nesse ramo específico. Essa empresa era essencial para as seguradoras argentinas, sendo composta por equipe multiprofissional que analisava o risco, inclusive com inspeção de risco in loco, taxava, elaborava as condições das apólices, realizava a regulação de sinistro, entre outras atividades essenciais para uma seguradora. Não obstante, a San Pacific era a responsável pelo resseguro, ou seja, fazia todas as negociações para a seguradora e era a responsável pelo bom equilíbrio da carteira de RCP.
Diante do seu encantamento, Felippe trouxe o modelo e o implantou no Brasil. Aqui, como na Argentina, ainda não havia qualquer dado, incluindo taxas, riscos e aculturamento de processos contra médicos. Toda a base tarifária que tinha era de um grupo de resseguradoresinternacionais, sendo que na época ainda se tinha o monopólio do Instituto de Resseguro do Brasil (IRB), assim, para haver a participação desses resseguradores, deveria haver a negativa expressa do IRB. Na época, o seguro de RCP, na área da saúde, era algo considerado arriscado para qualquer seguradora, uma vez que a apólice era a base de ocorrência e seaplicava a prescrição de 20 anos. Discorrer-se-á sobre a distinção das atuais formas de contratação da apólice em tópico específico.
Posteriormente, sob a influência e assessoria de Felippe, a Nobre Seguradora do Brasil foi a primeira seguradora que elaborou o produto específico no Brasil. Quando levaram o clausulado ao IRB, todos estavam inseguros com a aceitação, pois era algo novo e com riscos altos devido ao modelo adotado de apólice à base de ocorrência. Ademais, naturalmente, a Nobre não queria ficar com o maior risco, repassando para o Ressegurador 80% dele.Felizmente e para a surpresa de todos os envolvidos, o IRB aceitou a base de ocorrência, não sendo necessário os resseguradores estrangeiros. Utilizando-se a base tarifária daqueles resseguradores, as atividades foram iniciadas.
Assim, o clausulado específico, da forma que é conhecido, começou no final de 1999.Aliás, temos várias denominações para o mesmo produto, quais sejam: RCP na Área da Saúde, RC Médicos, RC Clínicas, RC Hospitais, Seguro de Erro Médico, Medmal (Medical Malpractice) e Heathcare Liability Insurance.
Anteriormente a isso, a antiga Real Seguros, hoje Tokio Marine, tinha a cobertura de RCP na área da saúde, mas eram condições de RC com cláusulas especiais. Tratava-se de uma verdadeira colcha de retalhos.
Existia também a Nobre Clube de Seguros, que era um clube de seguro de vida, e nele havia uma cláusula de RCP para os médicos, já que trabalhavam com essa classe, mas era um seguro somente de indenização com pagamento após o trânsito em julgado, via reembolso esem envolver os demais custos de um processo ou possibilidade de acordo.
2. LINGUAGEM DAS APÓLICES
Para o senso comum e até mesmo para os advogados que não militam no Direto Securitário, a leitura de um clausulado é algo extremamente complicado, pois reflete a linguagem técnica proveniente dos usos e dos costumes relacionados ao seguimento. Vários termos são, inclusive, muito semelhantes à doutrina estrangeira, derivando da mesma raiz latina.
Segundo Walter A. Polido:
a medida mais recomendável para a promoção da melhoria do entendimento acerca dos clausulados de seguros no país passa pela educação. O contrato de seguros tem, por natureza, conceito universal e, portanto, é transnacional. Não constitui, desta forma, exclusividade brasileira.
Como é sabido, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990, determina que os contratos, ainda mais os de adesão, como iminentemente o contrato de seguro o é, sejam claros e de fácil entendimento pelo consumidor. Nessesentido:
Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
(…)
§ 3º Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.
§ 4º As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.
A não observância desses dispositivos fatalmente trará prejuízos à seguradora, uma vez que o Judiciário decidirá muito mais favoravelmente ao segurado-consumidor no caso de dúvida (AC 149.922-1 – TAMG; REsp 1.300.116/SP – STJ; REsp 1.293.006/SP – STJ).
Visando a obedecer às normas legais e a facilitar a compreensão, amenizando a complexidade da matéria, incluiu-se os glossários nas apólices, os quais definem os termos técnicos utilizados no contrato de seguro. Entretanto, como já era de se esperar, as seguradoras, temendo a lei, acabaram por definir termos que muitas vezes já possuem definição legal, tornando o clausulado ainda mais complexo de ser entendido.
Existe um movimento na área do seguro que defende a criação de um código securitário, o qual facilitaria e homogeneizaria os conceitos técnicos.
3. FORMAS DE CONTRATAÇÃO DA APÓLICE DE RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL
Este tema é de importância única, pois elucidará ao leitor o entendimento histórico acerca das formas de contratação da apólice e os riscos enfrentados pelas seguradoras ao longo da evolução do Seguro de Responsabilidade Civil Profissional na área da saúde, entendendo-se, assim, o motivo inicial de zelo das companhias securitárias para comercializarem essa carteira.
O modelo que imperou no mundo, em todos os seguimentos de Seguro de Responsabilidade Civil, até a década de 1980, foi o da Apólice à Base de Ocorrência – Occurrence Losses. Ainda hoje alguns ramos a utilizam.
Doutrinalmente, o conceito pode ser um tanto assustador, pois afirma que o fato gerador do dano deve ocorrer durante a vigência da apólice, podendo ser reclamado a qualquer tempo.
Exemplificando, o conceito se torna fácil de ser compreendido. Supondo que um médico cirurgião plástico, Davi, efetuou uma mastopexia, no ano de 2019, em uma paciente, que será chamada de Branca.
Branca ficou satisfeita com o resultado estético. Ocorre que, passados 3 anos,começou a apresentar dor, vermelhidão e inchaço em uma das mamas e procurou um médico mastologista. Após alguns exames de imagem, verificou-se que o problema advinha de uma pequena gaze que o cirurgião plástico “esqueceu” durante a mastopexia.
Assim, Branca, após 3 anos da cirurgia, sentindo-se prejudicada pelo ocorrido, resolveu processar o cirurgião Davi, que, quando tomou conhecimento do processo, não possuía nenhum seguro. Contudo, no ano de 2019, Davi tinha uma apólice à base de ocorrência de Medmal.
Dessa forma, pelas regras da apólice em comento, mesmo não tendo renovado o seguro, a cobertura securitária estaria presente, pois, no ano da cirurgia – fato gerador –, havia a contratação, não sendo importante a data da demanda judicial ou do conhecimento do processo – reclamação.
Fica claro que todas as cirurgias e atos médicos realizados por Davi, durante o ano de 2019, considerando uma apólice de vigência anual, estariam cobertos caso os pacientes resolvessem processá-lo ao longo de um tempo indeterminado, tendo como limitador tão somente o prazo prescricional que o paciente possui para propor a ação.
Para esse tipo de risco, que se estende ao longo de um grande período, o mercado convencionou chamá-lo de calda longa (long-tail) ou risco de latência prolongada (long-term exposure).
Nos Estados Unidos, mais especificamente na década de 1980, em que as apólices de responsabilidade civil, não só profissional, eram exclusivamente à base de ocorrência, o mercado securitário sofreu um grande prejuízo, pois eclodiram inúmeros processos indenizatórios, em especial devido à contaminação de trabalhadores com amianto, casos em que a Corte Americana acabou por condenar os respectivos responsáveis pelos danos causados aos terceiros. Na época, não se conseguiu precisar a data exata da contaminação. Logo, os magistrados, nos casos em que os responsáveis pelos danos tinham um seguro contratado, entenderam por bem responsabilizar diversas seguradoras, de forma solidária, pela reparação do dano, somando-se os limites máximos de indenização (LMI) das respectivas apólices.
Não só a questão do amianto foi tratada dessa forma, mas inúmeros outros casos, tais como sinistros de RC produto, envolvendo o uso de certos medicamentos por tempo prolongado, assim como RC ambiental, em que não era possível estabelecer a data exata do dano. Essas decisões acarretaram um grande prejuízo financeiro e até mesmo falência de algumas companhias securitárias, pois não estavam preparadas para o pagamento de elevada indenização, ainda mais devido ao fato de que muitas das apólices tiveram o término da vigência muitos anos antes e, por conseguinte, não se esperava mais por eventual pagamento.
Diante do forte desequilíbrio do fundo mutual administrado pelas seguradoras e da necessidade de garantir um risco long–tail, surgiu, incialmente, nos mercados europeu e americano, o modelo de Apólice à Base de Reclamação – Claims Made.
Exemplificar-se-á a forma de funcionamento dessa apólice, mas é importante ter em mente que, diferentemente da apólice à base de ocorrência, ela valoriza o momento da reclamação do terceiro que sofreu o dano como condição de gatilho, chamado usualmente de trigger, disparador do mecanismo de cobertura.
Em alguns países europeus, como na Espanha e na Bélgica, houve resistência inicial em sua adesão. Já na França proibiu-se a comercialização dessa modalidade de seguro, sendo admitida somente em 2002.
Após o período de acomodação internacional, chegou-se à conclusão que a apólice à base de reclamação protege de forma mais harmônica tanto o consumidor quanto as seguradoras.
No Brasil, no ano 2000, as seguradoras começaram a submeter os produtos àSuperintendência de Seguros Privados (Susep), sendo que a primeira apólice com essa base de contratação no ramo de RC se deu na categoria de RC produtos exteriores.
Entretanto, em 17 de março de 2001, devido à ausência de adequada compreensão e entendimento da nova modalidade de apólice, a Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça proibiu a claims made. Veja-se a Portaria SDE n.º 03:
CONSIDERANDO que decisões judiciais, decisões administrativas de diversos PROCONs, e entendimentos dos Ministérios Públicos pacificam como abusivas as cláusulas a seguir enumeradas, resolve:
(…)
Divulgar o seguinte elenco de cláusulas, as quais, na forma do artigo 51 da Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990, e do artigo 56 do Decreto n.º 2.181, de 20 de março de 1997, com o objetivo de orientar o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, serão consideradas como abusivas, notadamente para fim de aplicação do disposto no inciso IV, do art. 22 do Decreto n.º 2.181:
(…)
11. limite temporalmente, nos contratos de seguro de responsabilidade civil, a cobertura apenas às reclamações realizadas durante a vigência do contrato, e não ao evento ou sinistro ocorrido durante a vigência;
Após, através da Circular Susep n.º 235, de 21 de outubro de 2003, admitiu-se, finalmente, a comercialização da apólice à base de reclamação, inicialmente, somente para pessoa jurídica. Em 07 de dezembro de 2004, a SDE publicou a Portaria n.º 24, revogando o item 11 da Portaria SDE n.º 03.
Atualmente, essa categoria de apólice é regulamentada pela Circular Susep n.º 637, de 27 de julho de 2021, que dispõe:
Art. 2º Para fins desta Circular, são adotadas as seguintes definições:
(…)
II – seguro de responsabilidade civil à base de reclamações (claims made basis): tipo de contratação em que a indenização a terceiros, pelo segurado, obedece aosseguintes requisitos:
a) os danos ou o fato gerador tenham ocorrido durante o período de vigência da apólice, ou durante o período de retroatividade; e
b) o terceiro apresente a reclamação ao segurado durante a vigência da apólice, ou durante o prazo adicional, conforme estabelecido no contrato de seguro;
Segundo Eduardo Dantas:
o seguro emitido à base de RECLAMAÇÃO COM NOTIFICAÇÃO o fato gerador do dano deve ocorrer na vigência do contrato ou no prazo retroativo de cobertura, se houver, e a reclamação deve ocorrer na vigência do contrato ou no prazo adicional que é concedido para a reclamação (prazo complementar ou suplementar), caso a apólice não esteja mais vigente na seguradora que cobriria o risco.
Como já dito anteriormente, os conceitos aparentemente são complexos, mas voltar-se-á ao exemplo em que Davi é o cirurgião e Branca a paciente que realizou a mastopexia em 2019.
Na apólice à base de reclamação, em regra, para ter a cobertura securitária, Davi deveria ter uma apólice vigente em 2019 – data do fato gerador, do ato profissional – e,consequentemente, ter renovado a contratação até a data da ocorrência do processo –reclamação.
Alternativamente, quando a cirurgia foi realizada, o ato poderia estar dentro do prazo de retroatividade, o qual é negociado com as seguradoras, desde que o segurado não tenha conhecimento da insatisfação do paciente. Da mesma forma, alternativamente, quando houve a reclamação, poderia estar gozando do prazo adicional, que é um aditivo pago para se ter cobertura em caso de recebimento de reclamação de terceiros após o período de vigência da apólice.
Walter Polido, em sua coluna, esclarece que:
a “claims made”, então, diferentemente da apólice de ocorrências, cujo gatilho disparador (trigger) do mecanismo indenizatório está centrado na data da efetiva ocorrência do sinistro, determinou que o gatilho seria disparado com a reclamação do terceiro prejudicado ao segurado, ao pleitear a indenização. Esse modelo, revolucionário no segmento dos seguros de RC, passou a ser utilizado largamente pelos mercados internacionais, inclusive o brasileiro desde o final dos anos 1980.
Hoje, no Brasil, no Seguro de RCP na área da saúde é usado, de forma ostensiva, a apólice à base de reclamação com notificação, que nada mais é do que a apólice claims madetradicional com acréscimo de mais um gatilho, que é a faculdade do segurado informar àseguradora, na vigência da apólice, fatos ou circunstâncias potencialmente danosos que possam dar origem a reclamações futuras amparadas pelo seguro.
Voltando ao nosso exemplo, caso Davi soubesse, através de um colega do mesmo hospital que trabalha, que Branca teria que ser submetida a nova cirurgia em decorrência do esquecimento da gaze, prudentemente, deveria avisar à seguradora de um possível processo por parte dessa paciente.
Com a notificação, há vantagens para o segurado, pois, mesmo que não renove a apólice, haverá a cobertura de futuro sinistro, posto que o trigger já foi acionado, garantindo-se a apólice vigente. Igualmente, na hipótese de renovação em outra companhia seguradora, a apólice notificada será a responsável, caso a potencial reclamação torne-se um sinistro efetivamente.
Para as seguradoras, o modelo é um pouco mais trabalhoso para efetivar as provisões técnicas, assemelhando-se, nesse quesito, às apólices à base de ocorrência.
4. MOMENTO DA NOTIFICAÇÃO
Há anos se escuta no mercado acerca da obrigatoriedade, ou não, da realização da notificação junto à seguradora tão logo o profissional saiba de um possível futuro sinistro. No tópico anterior, discorreu-se sobre os benefícios da notificação, cabendo ao bom corretor e advogado orientar seus clientes nesse sentido.
É importante que fique claro que não se está abordando, até o presente momento, as informações a serem dadas à seguradora quando for feita a renovação.
Note-se que a atual Circular Susep (n.º 637/2021), que regulamenta a apólice à base de reclamação com notificação, assim como a anterior (n.º 336, de 22 de janeiro de 2007), em nenhum momento, considera a notificação mandatória, mas, tão somente, determina que, se houver circunstância relevante, deve ser feita tão logo se tome conhecimento, ou seja, durante a vigência da apólice. Destaque-se:
Art. 24. Os seguros à base de reclamações com notificações devem apresentar, no mínimo, as seguintes informações:
(…)
IV – as notificações devem ser apresentadas tão logo o segurado tome conhecimento de fatos ou circunstâncias relevantes, potencialmente danosos, que possam acarretar uma reclamação futura por parte de terceiros, nelas indicando, da forma mais completa possível, informações do evento ocorrido, do terceiro atingido, da natureza dos danos ou lesões corporais, e suas possíveis consequências.
Uma vez que a Susep não condiciona a obrigatoriedade, as seguradoras possuem liberdade de redigir seus produtos, destacando-se que, até pouco tempo, as principais seguradoras que comercializam o Medmal tinham a notificação como faculdade. Destacam-se dois clausulados vigentes:
Durante o período de vigência desta apólice, é facultado ao Segurado notificar a Seguradora sobre a ocorrência de quaisquer atos, fatos ou circunstâncias que possam originar uma reclamação. A notificação também poderá ser dirigida à Seguradora durante o Prazo complementar e quando contratado, o Prazo suplementar.
Notificações: Caso o Segurado tome conhecimento de algum fato ou circunstância que possam acarretar uma Reclamação futura por parte de Terceiros, este poderá acionar o Seguro em uma tentativa de mitigar o Prejuízo causado ao Terceiro.
Ocorre que uma das principais seguradoras no ramo tornou obrigatória a notificação.Veja-se:
3.4. O Segurado deverá notificar à Seguradora a ocorrência de quaisquer atos, fatos ou circunstâncias que possam originar uma reclamação, cuja inobservância poderá acarretar a perda do direito à indenização.
Assim, tanto o segurado quanto os corretores e os advogados devem ficar sempre atentos às novas redações dos produtos, pois as atualizações têm sido frequentes e sua inobservância poderá acarretar negativa de futura cobertura.
Faz-se mister destacar que, independentemente da discussão acadêmica e conceitual sobre o tema acima, é preciso lembrar que não há renovação de apólice automática. De forma que, na prática, todas as seguradoras, ao analisarem os questionários de renovação, indagam ao segurado se possui conhecimento de algum fato que possa gerar futuro sinistro. Ou seja, as seguradoras acabam por lembrar os segurados se possuem algo a notificar quando ocorre a renovação.
Preciso é lembrar que, na atividade médica, a ocorrência de óbitos e fatos adversos são corriqueiros e que não é toda adversidade que deve ser comunicada à seguradora, pois, se assim fosse, ter-se-ia um iminente desequilíbrio da carteira, já que haveria necessidade de reserva técnica para fatos que sequer teriam a possibilidade de se tornarem um sinistro futuro.Como dito, não são todos os óbitos que devem ser comunicados, mas, se ocorrer uma morte, mesmo que tenha havido o emprego da boa prática médica, e o familiar solicitar a cópia do prontuário, ameaçar o corpo clínico e chamar a imprensa, deve-se realizar a notificação.
As seguradoras se veem compelidas a esse tipo de pergunta no questionário, uma vez que o fator IBNR (Provisão de Sinistros Ocorridos e Não Avisados) – sinistros ocorridos, porém não conhecidos ou não reclamados – pode variar, e muito, na precificação do seguro.
5. ÁREA DE ATUAÇÃO E ESPECIALIDADE
Ainda sobre o assunto precificação, como não poderia deixar de ser, nos questionários para aceitação do risco, há a indagação da área de atuação do profissional. Note-se que a indagação é sobre área de atuação e não especialidade.
Dentro da medicina, atualmente, existem 55 especialidades médicas reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), nos moldes da Resolução CFM 2.221, de 27 de setembro de 2018. Para se tornar um especialista é necessário concluir a residência médica, adquirindo, por conseguinte, o certificado de residência e registrá-lo perante o conselho de classe. Alternativamente, o médico que não cursou a residência pode prestar a prova de título após comprovar um período mínimo de atuação e, obtendo sucesso, também deve registrar o feito.
Independentemente da especialidade, o médico recém-formado, desde que regularmente inscrito no Conselho Regional de Medicina (CRM) de seu estado, está formal e legalmente habilitado para atuar em qualquer procedimento médico, com a condição de não divulgar ser especialista. Dessa forma, qualquer médico pode exercer a medicina em qualquer área de atuação, independentemente do título de especialista.
Diante dessa faculdade do médico, as seguradoras, ao analisarem o risco do profissional, questionam qual a área de atuação, para que a subscrição possa analisar a aceitação e consequentemente precificar o prêmio.
A base lógica, estatística e fundamental sobre a qual se amarra o contrato de segurosegue a linha das instituições financeiras, na medida em que, mediante o recrutamento de um fundo comum por meio do pagamento de um maior número possível de contribuintes, possa minimizar o risco individual deles e obter lucro por meio de uma gestão desses riscos.
O raciocínio para uma companhia de seguro atuar em qualquer ramo é bastante simples: ela precisa recolher mais prêmios do que pagar sinistros. Utilizando alguma base emprestada e, ao longo do tempo, com a própria base da seguradora, faz-se a seguinte conta: sinistros pagos versus chances de sinistros ocorrerem e ao resultado adicionam-se as despesasde comercialização, administrativas e impostos.
Algumas áreas de atuação na medicina, tanto no mercado nacional quanto nointernacional, são mais reclamadas do que outras, tais como cirurgia plástica, ginecologia/obstetrícia e ortopedia. Dessa forma, e com base no equilíbrio financeiro, a atuação nessas áreas traz maior risco de sinistro e, consequentemente, para se manter o equilibro da carteira, o prêmio a ser cobrado deve ser maior.
Na hipótese do profissional, quando ocorre a contratação do seguro, atuar na área de medicina de urgência e, posteriormente, mudar a dedicação de sua atividade, ele deve comunicar à seguradora sobre a alteração, sob pena de ter eventual cobertura negada em caso de sinistro. O mencionado ato está em consonância com o princípio da boa-fé objetiva dos contratos. Caso haja a majoração do risco, a companhia poderá cobrar um prêmio complementar.
6. NOTAS CONCLUSIVAS
O artigo se dedicou à exposição sobre a introdução do Seguro de Responsabilidade Civil Profissional na área da saúde, o qual teve a participação ativa do Doutor Felippe Moreira Paes Barretto, que, como não poderia deixar de ser, até a atualidade atua na área, sendo uma grande referência e consultor desse segmento tão específico e sensível.
A área do Direito Médico vem crescendo exponencialmente, existindo inúmeros cursos sobre a matéria. Entretanto, o Direito do Seguro, no seguimento da Responsabilidade Civil Profissional, é ainda pouco explorado, sendo de vital importância tanto para o Direito Médico quanto para as seguradoras e os médicos, pois é a forma menos onerosa de gestão do risco financeiro da profissão.
O regime definido para a regulação dos seguros, estabelecido pelo Código Civil (CC), Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, bem como a normatização da Susep, vem mostrando uma necessária evolução, assumindo não apenas o papel de garantir a indenização por dívidas decorrentes da atuação profissional do segurado, mas também satisfazendo o ressarcimento do dano à vítima potencial.
O entendimento das premissas do Direito do Seguro nas Apólices de Responsabilidade Civil Profissional na área da saúde se torna cada vez mais importante, pois, como demonstrado no presente artigo, inúmeros detalhes existem e são primordiais para o bom desempenho dos profissionais que cercam a classe médica, seja advogado ou corretor de seguros.
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______. Circular Susep n.º 336, de 22 de janeiro de 2007. Dispõe sobre a operacionalização das apólices de seguro de responsabilidade civil a base de reclamações (“claims made basis”). Disponível em: <https://www2.susep.gov.br/safe/bnportal/internet/pt-BR/search/21746?exp=%22%7B2019-%7D%22%2Fanodoc%20%22CIRCULAR%20SUSEP%22%2Fdis>. Acesso em:
______. Circular Susep n.º 637, de 27 de julho de 2021. Dispõe sobre os seguros do grupo responsabilidades. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/circular-susep-n-637-de-27-de-julho-de-2021-334825686>. Acesso em: